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Sabe o que os nativos brasileiros comiam na era pré-Cabral? Muita coisa que ainda está na nossa mesa

Luciana Mastrorosa

16/08/2017 08h00

Estudar os povos do passado é uma tarefa árdua. A ciência vai avançando e trazendo métodos novos de identificação e datação de fósseis e restos humanos (ou deixados por eles), e hoje é até possível saber, por exemplo, para que serviam determinados utensílios só pelos vestígios moleculares contidos neles. É graças a essas tecnologias que conseguimos ter um vislumbre do que comiam e como viviam nossos antepassados pré-históricos nascidos aqui nesta terra, bem antes da chegada de Cabral. E a surpresa é incrível: muito do que comemos até hoje, como mandioca e batata doce, já estavam no prato dos nativos. Ou seja, aquela tapioca vai muito além do modismo fitness.

Essa história é contada pelo jornalista Reinaldo José Lopes em seu novo livro, "1499 – O Brasil Antes de Cabral" (Harper Collins, R$ 34,90), que acaba de ser lançado. Com uma linguagem leve e acessível, o jornalista traça um perfil dos povos que aqui habitavam antes de 1500 e joga luz sobre a pré-história brasileira. Além de dados interessantíssimos sobre como possivelmente os primeiros habitantes teriam chegado por estas bandas, ele também relata como seria a fauna e flora daqui naquela época, nutrindo nosso imaginário com preguiças gigantes, tatus do tamanho de um Fusca e dentes de sabre perigosíssimos.

Mas o capítulo mais legal de todos para quem ama comida é, sem dúvida, o "Revolução Agrícola Made in Brazil", que traz informações sobre o que se comia na era pré-cabralina. Nesse capítulo, o jornalista fala principalmente da Amazônia, conceituando-a para além dos limites atuais (pois não faz sentido falar em fronteiras políticas quando elas ainda não existiam). Assim, ficamos sabendo que coisas que fazem parte da nossa dieta hoje eram consumidas já naquela época, Cará e inhame, tão típicos de dietas da América do Sul, teriam sido domesticados na região amazônica. E tem muito mais! Selecionei abaixo alguns destaques bacanas para você:

(Foto: iStock)

Mandioca doce e brava
Sabe aquela mandioca deliciosa, que a gente ama cozida e frita? Os nativos pré-cabralinos também adoravam essa raiz. Mas utilizavam mais a mandioca brava, ainda hoje comum na dieta brasileira, especialmente nos estados do Norte. Essa variedade é supervenenosa e, se não for bem preparada, o cianeto contido nelas pode matar. O mais interessante é que os nativos preferiam plantar essa mandioca venenosa, pois ela se virava melhor contra o ataque de pragas. E, no solo pobre e ácido da floresta, sobrevivia com louvor. Com ela, preparavam beiju, parecido com tapioca, e também bebida alcoólica.

Cacau e abacaxi
Agradeça à Amazônia pelo chocolate que você tanto adora! E por aquele maravilhoso suco de abacaxi, que cai tão bem depois do churrasco. Essas duas frutas que hoje fazem parte da dieta mundial têm origem, ao que tudo indica, nessa região. E já eram consumidas pelos nativos, claro. No caso do abacaxi, acredita-se que a região próxima das Guianas seja o local de origem dessa fruta. Já o cacau… Veja que interessante: todo mundo acha que nasceu no México e na América Central, já que foram os habitantes de lá a apresentar essa maravilha da natureza para os europeus, certo? Só que, como explica Reinaldo, análises genéticas mostram que os cacaueiros atuais possuem ancestrais selvagens que teriam se originado na fronteira do Peru e da Colômbia com o Brasil. Ou seja: possivelmente,  teriam sido semidomesticados aqui antes de ir para os locais que o deixaram famoso! Uma diferença: nossos nativos provavelmente usavam a polpa do cacau, e não as sementes torradas e processadas, como fazemos hoje.

(Foto: iStock)

Pimentas, batata doce, milho, feijão
Análises recentes envolvendo alimentos, como no caso do cacau, sugerem que os povos que aqui habitavam antes da chegada dos europeus fizeram, sim, uma revolução agrícola muito particular, ajudando a difundir diversas espécies pelas Américas. Inclusive, com conexões comerciais pré-históricas, ainda que indiretas, entre os povos amazônicos e o México, permitindo essa troca de ingredientes lá e cá. E com manejo de solo interessantíssimo, originando a chamada "terra preta de índio", bastante fértil. Assim, pimentas do gênero Capsicum (como a dedo-de-moça e a malagueta), batata doce, abóboras variadas, milho, amendoim e feijão já faziam parte da dieta pré-cabralina, mesmo que nem todos os ingredientes fossem originalmente daqui (o milho, por exemplo, era cultivado no México há 9 mil anos e logo se espalhou para os lados de cá, e as abóboras teriam vindo da costa oeste do continente americano).

Nada de animais domésticos
Curiosamente, nossa revolução agrícola não incluiu a domesticação de animais, como ocorreu no antigo Oriente Próximo, onde mamíferos de grande porte, como bois, cabras, ovelhas e porcos tornaram-se parceiros dos "fazendeiros pré-históricos", como diz Reinaldo.  Com exceção das lhamas e alpacas, nos Andes, não houve nada parecido por aqui (e esses animais nunca se espalharam fora de seu território). Pode parecer um detalhe à toa, mas essa questão é apontada como um dos fatores decisivos para que os inúmeros (e populosos) povos que habitaram por aqui antes de nós fossem derrotados pelos europeus.

Ou seja, nossa pré-história parece ter sido bastante animada, deixando raízes e marcas profundas que reverberam em nossos hábito mais prosaicos até os dias atuais. Acho muito emocionante pensar que temos sobrevivido, como espécie, à base de nossas habilidades culinárias e agrícolas, e que continuamos comendo alimentos que já nutriam antepassados que chegaram aqui muito antes de nós. Por isso, nada mais justo que fazer a sua parte no jogo evolutivo e começar a cozinhar sua própria comida. Você pode fazer  mandioca, batata doce, feijão…

Sobre a Autora

Luciana Mastrorosa é apaixonada por escrever, cozinhar e comer. Jornalista especializada em gastronomia e pesquisadora da área de alimentação, passou pelos principais veículos do país. Formada no Le Cordon Bleu Paris e Université de Reims Champagne-Ardenne, atualmente cursa o Mestrado em Nutrição Humana Aplicada, na Universidade de São Paulo. É autora do livro Pingado e Pão na Chapa - Histórias e Receitas de Café da Manhã (editora Memória Visual) e do e-book "Natal Feliz - 30 Receitas Incríveis para a Sua Ceia".

Sobre o Blog

Menu do Dia é o blog de culinária, receitas, gastronomia e nutrição, da jornalista e pesquisadora Luciana Mastrorosa. Aqui, você vai encontrar notícias, reflexões, receitas, degustações e muito mais sobre uma das melhores coisas da vida: comer.