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Comida no lixo, indústria e obesidade: o que tem a ver tudo isso?

Luciana Mastrorosa

26/09/2017 08h00

(foto: iStock)

Os últimos dias foram agitados no mundo da alimentação. Eu sei que a gente já falou, viu e leu vários pontos de vista sobre o assunto, mas não podia deixar de comentar aqui. Vamos aos fatos: uma reportagem publicada no "The New York Times" no dia 16 de setembro polemizou ao colocar a culpa do aumento da obesidade no Brasil (e em outros países em desenvolvimento) ao consumo de junk food, comidas industrializadas como bolos, biscoitos e achocolatados produzidos por gigantes da indústria alimentícia (leia a reportagem na íntegra aqui). Na sequência, outra notícia impactante, no mesmo dia: 160 kg de comida foi para o lixo no estande da chef Roberta Sudbrack, no Rock in Rio, depois de uma inspeção da Vigilância Sanitária. Motivo: os produtos, queijos e linguiças artesanais, não possuíam selo do Serviço de Inspeção Federal (SIF) para comercialização dentro do Rio de Janeiro. Além deles, outros 850 kg desses alimentos que estavam em estoque também foram interditados para comercialização, e um ofício seria encaminhado ao Ministério Público para definir o destino desses produtos. Nem é preciso citar a comoção que foi, não só pelo prejuízo da chef, mas pelo gesto de jogar essa quantidade de comida no lixo num país onde tanta gente ainda passa fome. E a Vigilância Sanitária não estava errada, apenas cumprindo seu papel. E agora?

O peso da indústria
O que uma coisa tem a ver com a outra? Tudo. Primeiro, a questão dos industrializados. Como a gente já falou por aqui, seria uma hipocrisia simplesmente demonizar a indústria alimentícia. Afinal, boa parte do que chega à nossa mesa, mesmo os produtos frescos, como carnes, leite e vegetais, passa por algum tipo mínimo de processamento, como já falei aqui no blog. Ou seja: podem ser lavados, higienizados, removidos de folhas secas, terra, debulhados, empacotados, refrigerados, etc. Nem tudo o que é industrializado é ruim, por si só. O problema, como aponta a matéria polêmica, ocorre com o consumo excessivo de uma categoria específica de industrializados, os denominados "ultraprocessados", como classifica a segunda edição do Guia Alimentar para a População Brasileira, de 2014.

De acordo com o Guia, os ultraprocessados são "formulações industriais feitas inteiramente ou majoritariamente de substâncias extraídas de alimentos (óleos, gorduras, açúcar, amido, proteínas), derivadas de constituintes de alimentos (gorduras hidrogenadas, amido modificado) ou sintetizadas em laboratório com base em matérias orgânicas como petróleo e carvão (corantes, aromatizantes, realçadores de sabor e vários tipos de aditivos usados para dotar os produtos de propriedades sensoriais atraentes)". Exemplos: biscoitos simples e recheados, sorvetes, balas e guloseimas, cereais açucarados para o café da manhã, bolos, barras de cereal, salgadinhos de pacote, refrigerantes, hambúrgueres, nuggets, lasanha congelada etc. É o alto consumo dessa categoria de produtos que a reportagem do "NYT" aponta como vilã para o aumento expressivo da obesidade no Brasil e no mundo, pois é sabido que eles costumam conter quantidades elevadas de açúcares, gorduras e sal.

Artesanais pouco valorizados
Segundo, a questão dos artesanais. É preciso seguir a legislação vigente para fiscalização e comercialização? Sim, claro que é. Intoxicação alimentar é coisa séria e a Vigilância Sanitária está correta em seguir a lei. Há toda uma responsabilidade envolvida na produção, comercialização, distribuição e armazenamento de alimentos para garantir que cheguem seguros à mesa do consumidor. O problema aqui é que a legislação precisa ser revista de modo a dar mais espaço para produtores artesanais para permitir que comercializem seus produtos com maior facilidade no Brasil todo. Porque, na prática, é mais fácil achar um queijo francês no mercado, feito a quilômetros e quilômetros de distância e trazidos em contêineres, do que um queijo Minas de leite cru feito no Estado vizinho.

Revisar a legislação não é um trabalho fácil, mas é preciso que se comece a pensar numa forma de fazer isso sem desconsiderar questões de segurança alimentar. E a gente sabe que chefs como Roberta Sudbrack, Alex Atala, Helena Rizzo e outros tantos expoentes da nossa gastronomia fazem um esforço danado para obter os produtos da melhor qualidade feitos e comercializados em nosso país. E incentivar uma melhor qualidade dos nossos produtos artesanais também é, de certa forma, uma maneira de ajudar a diminuir o consumo de ultraprocessados. É claro que um produto artesanal não é garantia de conter pouca quantidade de gordura, açúcar ou sal. A diferença está na quantidade de aditivos usados, corantes artificiais etc. Nem é só uma questão de saúde, mas também de sabor: você prefere uma linguiça de porco feita só com carne suína ou outra que leva soja e "carne mecanicamente separada de aves", glutamato monossódico e etc, como a gente vê por aí? Enfim, a lei deve ser cumprida sempre, mas talvez esteja defasada no sentido de valorizar o que é feito com qualidade em nosso país.

E quem tem acesso?
Juntando os fatos: o Guia Alimentar deixa claro que a base para uma alimentação saudável deveria ser composta de alimentos minimamente processados, como verduras, legumes e frutas, carnes frescas, grãos, cereais, leite fresco etc., complementados por ingredientes culinários e também um pouco de alimentos processados, como os queijos artesanais, por exemplo. Ou seja, quanto mais fresco, melhor. Também prioriza a prática culinária e incentiva a compra de produtos de agricultura familiar. Mas, para que isso possa ser seguido com sucesso, é preciso garantir que esses alimentos cheguem a todos os brasileiros com preços acessíveis. Porque, sim, tem muita gente que não tem acesso a uma simples feira livre, como apontou a ótima reportagem do UOL TAB sobre desertos alimentares.

E, muitas vezes, é mais prático para muitas pessoas comprar produtos que chegam à sua porta, como os tais ultraprocessados citados na reportagem, do que ir a uma feira livre, a pé, andando em ruas esburacadas, super distantes de suas casas. A questão da alimentação nunca é tão simples quanto parece, e não há só vilões. O mais importante é haver vontade política para que seja dado o primeiro passo no sentido de garantir que mais gente tenha acesso a comida fresca de qualidade, todos os dias, perto de suas casas, com um preço que possam pagar.

Sobre a Autora

Luciana Mastrorosa é apaixonada por escrever, cozinhar e comer. Jornalista especializada em gastronomia e pesquisadora da área de alimentação, passou pelos principais veículos do país. Formada no Le Cordon Bleu Paris e Université de Reims Champagne-Ardenne, atualmente cursa o Mestrado em Nutrição Humana Aplicada, na Universidade de São Paulo. É autora do livro Pingado e Pão na Chapa - Histórias e Receitas de Café da Manhã (editora Memória Visual) e do e-book "Natal Feliz - 30 Receitas Incríveis para a Sua Ceia".

Sobre o Blog

Menu do Dia é o blog de culinária, receitas, gastronomia e nutrição, da jornalista e pesquisadora Luciana Mastrorosa. Aqui, você vai encontrar notícias, reflexões, receitas, degustações e muito mais sobre uma das melhores coisas da vida: comer.