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"Farinata" na merenda escolar? A gente não come só nutrientes

Luciana Mastrorosa

19/10/2017 13h05

Biscoito feito com Farinata, que deve fazer parte da merenda escolar da rede de São Paulo

Esta semana estou cobrindo o 21º Congresso Internacional de Nutrição, em Buenos Aires, Argentina. Uma semana ouvindo grandes pesquisadores e cientistas do mundo inteiro falando sobre as descobertas mais atuais no campo da alimentação e nutrição. Aí me deparo com a notícia (leia a reportagem completa da Folha de S.Paulo) de que a prefeitura de São Paulo pretende introduzir, já a partir de outubro, a "farinata", uma espécie de farinha desenvolvida para aproveitar alimentos perto da data de validade e que seriam descartados, na merenda escolar da rede de São Paulo. O mesmo ingrediente serve de base para um composto granulado que pretende ser distribuído aos "pobres", por iniciativa do prefeito da cidade, João Dória, que já virou polêmica antes mesmo de a iniciativa ser colocada em prática. O "granulado alimentar" ganhou até apelido: "ração humana".

Pois bem. Eu fui uma estudante de escola pública a vida toda, exceto na minha primeira faculdade e na minha primeira pós-graduação. Escola estadual, não municipal, mas pública. E mesmo agora, adulta, sigo estudante de escola pública, como aluna da graduação e do Mestrado em Nutrição na Universidade de São Paulo. Porque disse isso? Porque eu vi, de perto, como eram as merendas escolares naquela época, metade dos anos 1980 até meados de 1990, e posso dizer: eram horríveis. Eu tinha muita vergonha de estudar em escola pública, por muitos motivos. Um deles era essa questão alimentar: me sentia um pouco humilhada com aquelas papas brancas, cor-de-rosa ou marrons, supostamente de coco, morango e chocolate, distribuídas aos alunos de qualquer jeito na hora do lanche, em canequinhas toscas de alumínio. Havia dias em que o lanchinho era um ovo cozido e banana, o que me parecia bem melhor. Mas o momento mais esperado pelos meus colegas era quando tinha distribuição de cachorro-quente: a salsicha (de soja, diziam) era um negócio simplesmente incomível. Cinza. Eu, que não era lá muito popular, virava a rainha da escola porque doava minha fichinha de papel, que daria direito a um sanduíche, para quem quisesse. Naquele contexto dos anos 1980, posso dizer que era uma criança privilegiada por poder levar lanche de casa, mesmo que simples, e não precisar me submeter àquelas comidas. Mas muitos, muitos mesmo, dos meus colegas tantas vezes só tinham aquilo para comer durante todo o dia. E as canequinhas de alumínio só pioravam as coisas, parecia que estávamos numa prisão. Ruim, mesmo.

Isso tudo tinha ficado esquecido até o episódio da "ração humana" proposta pelo prefeito. Nada contra o aproveitamento de alimentos: a gente sabe que o desperdício é gigante e precisa ser combatido. É necessário repensar um monte de coisas em relação a isso, como a gente já falou por aqui. Mas uma coisa é salvar alimentos bons que iriam para o lixo e redistribui-los para quem necessita. Outra coisa, bem diferente, é transformá-los num composto cuja fórmula ainda precisa ser melhor divulgada e começar a aplicá-lo sem considerar um monte de coisas que já estão em curso.

A gente tem um documento no Brasil, oficial, que norteia as questões alimentares. Trata-se do Guia Alimentar para a População Brasileira, segunda edição publicada em 2014 e de distribuição gratuita (inclusive, o pdf pode ser baixado aqui). E esse Guia, entre outras coisas, sugere que a base da alimentação seja composta por alimentos frescos ou minimamente processados, e que se devem evitar aquelas formulações industriais chamadas de ultraprocessados. Comer comida de verdade é o melhor para todos: arroz, feijão, bife, salada, ovo, frutas, leite, pão. Como recomendar, então, um produto que nem cara de comida tem? E vamos lembrar que, desde minha época de criança, muita coisa já tinha mudado na merenda escolar, com a inclusão até de alimentos orgânicos.

Vou dizer uma coisa do ponto de vista de quem já esteve lá, comendo merenda escolar de escola pública: comer comida de verdade importa, sim. Comer algo feito apenas com o intuito de "nutrir" me parece bem limitado e não contribui em nada para desenvolver a cultura alimentar de um povo, suas regras e suas belezas. Afinal, não sou eu quem está dizendo, é a ciência: comer vai muito além de ingerir nutrientes. Mas parece que estamos, como sociedade, retrocedendo no que diz respeito a isso.

Sobre a Autora

Luciana Mastrorosa é apaixonada por escrever, cozinhar e comer. Jornalista especializada em gastronomia e pesquisadora da área de alimentação, passou pelos principais veículos do país. Formada no Le Cordon Bleu Paris e Université de Reims Champagne-Ardenne, atualmente cursa o Mestrado em Nutrição Humana Aplicada, na Universidade de São Paulo. É autora do livro Pingado e Pão na Chapa - Histórias e Receitas de Café da Manhã (editora Memória Visual) e do e-book "Natal Feliz - 30 Receitas Incríveis para a Sua Ceia".

Sobre o Blog

Menu do Dia é o blog de culinária, receitas, gastronomia e nutrição, da jornalista e pesquisadora Luciana Mastrorosa. Aqui, você vai encontrar notícias, reflexões, receitas, degustações e muito mais sobre uma das melhores coisas da vida: comer.