Topo

Com Alex Atala e Bela Gil, Fru.to convoca brasileiros a repensar a comida

Luciana Mastrorosa

01/02/2018 08h00

Alex Atala (à esquerda) e Felipe Ribenboim, chefs e idealizadores do seminário Fru.to, em São Paulo (foto: Reinaldo Canato/ FRUTO)

O ano mal começou e o premiado chef Alex Atala mostrou que 2018 promete ser aquecido no debate sobre alimentação. Nos dias 26 e 27 de janeiro, Atala e o também chef Felipe Ribenboim apresentaram a primeira edição do seminário Fru.to – Diálogos do Alimento, na Unibes, em São Paulo. Atala está à frente não apenas dos restaurantes D.O.M. e Dalva e Dito, na capital paulista, como também do Instituto Atá. Ribenboim dedica-se atualmente a projetos que envolvem gastronomia e alimentação, após encerrar seu restaurante Dois Gastronomia Contemporânea, em parceria com o chef Gabriel Broide.

O evento, apenas para convidados, reuniu nomes de peso não apenas da gastronomia, mas também da alimentação e da nutrição, do Brasil e do mundo – da apresentadora Bela Gil ao italiano Carlo Petrini, fundador do movimento Slow Food. Por estar ligada a pesquisa na área de Nutrição, e também jornalista de gastronomia, fui uma das convidadas para acompanhar a programação de perto. Nem preciso dizer como fiquei feliz demais de estar lá e poder trazer um pouquinho do que vi aqui para você.

Foram dois dias intensos de palestras no formato "TED Talks". Para começar, algo me agradou muitíssimo desde o começo: as palestras todas foram transmitidas ao vivo, bastava entrar no site do Fru.to para ter acesso. Para quem não pôde acompanhar, elas serão disponibilizadas no Youtube em cerca de duas semanas, vale a pena procurar. Confira no site do Fru.to todos os palestrantes e temas apresentados.

De tudo o que foi dito pelos mais de 30 palestrantes, a mensagem que ficou é clara: precisamos repensar urgentemente o nosso sistema alimentar, não apenas no Brasil, mas globalmente. E algo que pode contribuir bastante para isso é o estabelecimento de novas alianças, projetos colaborativos e cocriação. O famoso "pensar fora da caixa", conectando mais e separando menos. "Precisamos ser coprodutores, não consumidores", afirmou Carlo Petrini. "Essa aliança é estratégica para a mudança de paradigma. Temos de dar um passo à frente e buscar isso. Não se muda nada apenas com a própria individualidade".

As principais ideias apresentadas nos dois dias de palestras, com temas divididos em três eixos temáticos (cultural, biológico e social), foram consolidadas num documento (clique aqui para baixar gratuitamente) batizado de "10 sementes". Nesse manifesto, Atala, Ribenboim e os demais palestrantes plantam as sugestões e linhas de ação que podem colaborar para garantir que, em 50 anos, haja alimento para todos e o planeta não continue a ser degradado da maneira calamitosa como ocorre hoje.

O italiano Carlo Petrini, do Slow Food (foto: Leandro Martins/ FRUTO)

Discursos comoventes
Apesar do formato TED, com as personalidades comandando a ação, promovendo reflexões, e falando rapidamente, sem espaço para perguntas, o público não se intimidou e, por diversas vezes, demonstrou seu apoio de maneira fervorosa. A palestra de Petrini foi uma das mais aplaudidas, pois ele tocou em questões muito atuais, como a atuação das multinacionais e sua influência na alimentação mundial. Terminou citando um conterrâneo seu, São Francisco de Assis, que dizia: "faça primeiro o que for necessário; depois, o que for possível; e então, procure fazer o que parece impossível".

Assim como Petrini, foram muitos os palestrantes que comoveram o público com seu discurso. Como a gente vem adiantando aqui no Menu do Dia, está ficando cada vez mais impossível pensar a alimentação sem pensar junto em política, economia, geografia e, principalmente, sustentabilidade. E foi justamente isso que as palestras visavam abordar. Simplesmente, é inviável manter um modelo alimentar único e globalizado para toda a população do planeta, que deve chegar a 9 bilhões de pessoas em 2050, segundo projeção da Organização Mundial de Saúde (OMS). É preciso repensar não apenas o que se come, mas também o desperdício de alimentos, os problemas de distribuição de comida, a fome e a obesidade. A questão da alimentação ultrapassa a mera ingestão de comida, abrangendo, sim, os conflitos políticos e sócio-econômicos. Onde há guerra, há fome.

Destaques das palestras

Suzana Herculano: a neurocientista brasileira que atualmente é professora associada da Universidade Vanderbilt, nos Estados Unidos, apresentou seu livro "A Vantagem Humana: Como Nosso Cérebro se Tornou Superpoderoso" (Cia das Letras). Nela, ela explica como cozinhar o alimento auxiliou no desenvolvimento da nossa capacidade cerebral, mudando completamente nossa espécie. Foi um discurso bem focado na ciência, mas apaixonante para entender como chegamos até aqui como humanidade, graças à comida cozida.

Carlo Petrini
O fundador do movimento Slow Food também conquistou a plateia com seu discurso inflamado que incluiu duras críticas às multinacionais e convocou a todos a ser menos individualistas e a estabelecer alianças positivas. Tudo isso, sempre, com alegria. "A mudança só pode ser realizada com uma coisa: alegria", disse ele. "Uma pessoa triste não consegue mudar o mundo".

Ron Finley, o gangsta gardener, em seu exercício de gritar junto com a plateia (foto: Reinaldo Canato/ FRUTO)

Ron Finley
Que pessoa maravilhosa! O autodenominado "gangsta gardener", Ron Finley definitivamente foi o mais carismático desse evento. Com sua postura zen, determinada e gentil, e um vozeirão digno de cantor de ópera, Ron contou a sua história com jardinagem urbana (chegou a ser preso por plantar alimentos na rua) e emocionou a todos com sua luta em prol da agricultura local e ocupação dos espaços urbanos com "matos de comer", a exemplo do que faz a nossa brasileiríssima Neide Rigo, nutricionista que atua da mesma forma em espaços públicos, plantando hortas urbanas e ajudando a reconhecer e comer as PANCs – plantas alimentícias não convencionais – do nosso país. Além da palestra no primeiro dia do evento, Ron encerrou o segundo dia com dois exercícios para a plateia: no primeiro, todos foram convocados a gritar a plenos pulmões, para sentir a energia e a vibração do coletivo. No segundo, um exercício de visualização meditativa, Ron convidou a todos a se despir de seu corpo físico e "passear" na rua apenas com o que sobrou, a essência. Ao final do exercício, pediu a todos que não se limitassem pela pele, por aquilo que carregamos externamente, mas sim que nos enxergássemos de uma forma perfeitamente livre, sem limitações.

Rose Mendes, educadora social e gestora pública (foto: Leandro Martins/FRUTO)

Rose Mendes
A educadora social e gestora pública fez uma das palestras mais energéticas e politizadas de todas, falando de miséria, de como o Brasil havia saído do mapa da fome e agora corre sério risco de voltar novamente a ele. "Entender o alimento como um elemento cultural é essencial para o país. Ninguém vive sem comida! E por que nós permitimos que nossos cidadãos comam do lixo?", criticou ela. Ao final, falou abertamente em defesa das mulheres e também propôs que se colocassem na pauta as discussões sobre equidade, gênero e raça. "As mulheres são vítimas todo dia nesse nosso Brasil, vítimas da violência doméstica, de tantas violências. Eu mesma fui vítima de violência doméstica e por isso digo: lugar de mulher é onde ela quiser".

A apresentadora Bela Gil, encerrando o seminário (foto: Leandro Martins/ FRUTO)

Bela Gil
A apresentadora, nutricionista e ativista de uma alimentação natural encerrou o ciclo de palestras, no segundo dia do evento, antes do fecho com os exercícios de Ron Finley. Em discurso bastante politizado e firme, Bela apontou que, hoje, sofre bullying quem opta por comer saudavelmente. Chamou a atenção para a questão da merenda escolar e defendeu abertamente a atividade de cozinhar como um ato de empoderamento (e eu amei isso, porque penso exatamente a mesma coisa!). "Por que duas artes fundamentais da vida, a agricultura e a culinária, não estão no currículo escolar?", questionou. "Uma criança que nasce mexendo na terra, plantando, ou na cozinha com os pais, ela vai achar tudo isso algo muito natural. Cozinhar é libertador. Quando o jovem cozinha, ele se sente empoderado e independente", afirma Bela.

PANCs e produtores artesanais
Além de assistir a todas as palestras, estava incluído no convite para os participantes alguns momentos para não apenas ouvir sobre alimentação, mas também degustar os frutos do nosso país. Nos momentos de café e de almoço, a comida brasileira deu o tom, com destaque para bebidas e ingredientes de produtores artesanais, PANCs – plantas alimentícias não convencionais – e muitas das nossas frutas brasileiras em sucos e doces.

Próximo ano
A segunda edição já está sendo planejada e, assim como esta, deve ocorrer em janeiro de 2019. Ainda não há nomes confirmados e também não foi divulgada como será feita a convocação dos convidados e a distribuição dos convites. Para a próxima, deixo aqui duas sugestões: que a gente possa dialogar, de fato, com os palestrantes, com alguns minutinhos dedicados a perguntas do público. E também que haja um número maior de mulheres palestrando. Afinal, pensar no futuro do planeta também inclui discutir questões de gênero, raça, igualdade e equidade, como bem lembrou Rose Mendes.

Sobre a Autora

Luciana Mastrorosa é apaixonada por escrever, cozinhar e comer. Jornalista especializada em gastronomia e pesquisadora da área de alimentação, passou pelos principais veículos do país. Formada no Le Cordon Bleu Paris e Université de Reims Champagne-Ardenne, atualmente cursa o Mestrado em Nutrição Humana Aplicada, na Universidade de São Paulo. É autora do livro Pingado e Pão na Chapa - Histórias e Receitas de Café da Manhã (editora Memória Visual) e do e-book "Natal Feliz - 30 Receitas Incríveis para a Sua Ceia".

Sobre o Blog

Menu do Dia é o blog de culinária, receitas, gastronomia e nutrição, da jornalista e pesquisadora Luciana Mastrorosa. Aqui, você vai encontrar notícias, reflexões, receitas, degustações e muito mais sobre uma das melhores coisas da vida: comer.