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O voraz apetite dos romanos e seu molho favorito de peixe salgado e (quase) podre

Luciana Mastrorosa

15/07/2017 04h00

Um dos assuntos que mais gosto de pesquisar é a história da alimentação. É fascinante imaginar que muitos impérios se solidificaram (ou caíram) em função de alimentos. E, no quesito comida, os romanos são imbatíveis. Uma das teorias para a queda do império é a de que o hábito de consumir vinho e molhos cozidos em recipientes de chumbo teria lentamente envenenado a população. Teriam morrido, literalmente, pela boca.

 

(Foto: IStock)

Ao que consta, os romanos eram apaixonados por comida e não mediam esforços para trazer temperos, frutas, animais vivos e até gelo de lugares distantes para satisfazer seu paladar. Comiam trufas, cogumelos, carnes, verduras e legumes frescos, vinagres, muito azeite de oliva e vinho… E usavam diversas ervas em suas receitas que, hoje, a gente considera mais pelo aspecto ornamental, como a arruda. Quando obcecavam por um ingrediente, não mediam esforços para obtê-lo. Diz-se que foram o último povo a consumir o sílfio, um tipo de especiaria muito usada por gregos e romanos, que teria simplesmente desaparecido graças ao alto consumo e pouca adaptação ao cultivo.

Flor de garum, condimento desenvolvido na Espanha com base em receita ancestral romana. Foto: Divulgação

Garum, o molho que apaixonou os romanos

Mas, sem dúvida, o ingrediente que mais define a cozinha romana é o garum, um molho feito de peixe e suas vísceras, salgado e fermentado ao sol em grandes barris, que eram cobertos à noite e descobertos e mexidos durante o dia (imagine o cheiro). O garum foi o grande produto gastronômico desse povo, desenvolvido em diversas regiões diferentes, com qualidades distintas. Alguns finíssimos, outros mais rústicos, para o dia a dia.

Para nós, fica quase impossível imaginar o sabor e o aroma dessa iguaria exótica, que era usada para temperar de tudo na cozinha romana. Mas um grupo de pesquisadores das universidades espanholas de Cádis e Sevilha, reuniu seus conhecimentos de história, arqueologia e tecnologia de alimentos para desenvolver, em pleno século XXI, uma versão desse molho da Roma Antiga. Utilizando receitas da época e muita tecnologia para saber o que tinha no garum, eles conseguiram chegar bem perto de um resultado original.

A pesquisa resultou em um produto que já é comercializado e usado por chefs na Espanha. Batizado de "Flor de garum", vem em uma garrafa fina, de vidro, e custa menos de 30 euros. Essa versão é feita com peixe azul, especiarias mediterrâneas e sal marinho, e sua receita foi elaborada de acordo com método ancestral da "Tenda de Garum de Pompeia", a que os pesquisadores tiveram acesso.

O que sobrou até os dias atuais

Estranho que esse condimento, que tanto apaixonou o império romano, não tenha sobrevivido até hoje, como o molho pesto sobreviveu, por exemplo. Talvez por ter um sabor muito particular, era mesmo um gosto adquirido. De toda forma, ainda há algumas receitas tradicionais europeias que lembram o garum em sua essência, como a colatura di alici, um molho salgado feito com aliche, ou o pissalat francês, feito igualmente com peixe e sal. Outros afirmam que os molhos orientais de pescados e ostra, salgados e de sabor marcante, também carregariam um pouco dessa antiga tradição romana que se perdeu (e está sendo resgatada graças à ciência).

Para saber mais sobre o assunto

Um dos livros de cozinha mais antigos do mundo é o "De Re Coquinaria", atribuído a um indivíduo de nome Apicius. A obra reúne centenas de receitas romanas típicas, com uso abundante do garum e outros temperos da época. Dá para ler online, aqui, em inglês.

Sobre a Autora

Luciana Mastrorosa é apaixonada por escrever, cozinhar e comer. Jornalista especializada em gastronomia e pesquisadora da área de alimentação, passou pelos principais veículos do país. Formada no Le Cordon Bleu Paris e Université de Reims Champagne-Ardenne, atualmente cursa o Mestrado em Nutrição Humana Aplicada, na Universidade de São Paulo. É autora do livro Pingado e Pão na Chapa - Histórias e Receitas de Café da Manhã (editora Memória Visual) e do e-book "Natal Feliz - 30 Receitas Incríveis para a Sua Ceia".

Sobre o Blog

Menu do Dia é o blog de culinária, receitas, gastronomia e nutrição, da jornalista e pesquisadora Luciana Mastrorosa. Aqui, você vai encontrar notícias, reflexões, receitas, degustações e muito mais sobre uma das melhores coisas da vida: comer.