Chef catarinense ensina a usar ipê amarelo, plantas da praia e outras PANCs
Você sabia que o Brasil detém a maior biodiversidade do planeta, com aproximadamente 15 a 20% das espécies do mundo? E, apesar disso, poucas são as que conseguimos aproveitar no dia a dia, mesmo tendo um sabor agradável e uma grande riqueza nutricional. Agora, felizmente, cada vez mais chefs de cozinha, nutricionistas e entusiastas da gastronomia vêm redescobrindo as chamadas plantas alimentícias não convencionais, as PANCs (já falei delas no Menu do Dia, leia aqui), e estudando formas de incorporar nossa rica biodiversidade no prato.
Em Joinville, em Santa Catarina, com quase 490 mil habitantes, a paisagem de mar e montanha serve de inspiração para o chef Willian Vieira, à frente do Terroir Gastronomia. Ele é um dos expoentes atuais no trabalho com ingredientes catarinenses, especialmente as PANCs e os AMNCs – animais marinhos não convencionais, caso do ouriço e do berbigão. Como tem à disposição as riquezas de terra e mar, procura descobrir, com a ajuda de estudiosos de botânica e biologia, o que é de comer ou não. E transformá-los em pratos da cozinha contemporânea com produtos regionais e locais, de queijos a embutidos e cogumelos, do tradicional melado de cana ao mel das abelhas nativas, como a jataí. "Minha ideia é mostrar que a gente pode aproveitar mais do que nasce no nosso entorno, na nossa região. E que, muitas vezes, está ao alcance da mão, nos quintais das casas e nas praças", diz Willian.
Em uma visita a Joinville, o chef convidou o Menu do Dia para realizar uma tarefa que ele executa com frequência: colher essas plantas não tradicionais pelas ruas da cidade e também na praia, em São Francisco do Sul, conhecida como São Chico. Dessa colheita informal, descobri que flor de ipê e broto de chuchu são comestíveis (e deliciosos) e podem virar um banquete de alta gastronomia. E que o espinafre-de-areia, que nasce pertinho das rochas de praia, é ainda mais gostoso que o espinafre tradicional (e meio salino, praticamente já vem temperado).
Buquê de flores (comestíveis)
Na paisagem de Joinville, a maior surpresa foram as inúmeras flores comestíveis plantadas pela cidade ou que nascem espontaneamente nos quintais, jardins, praças e terrenos vazios. Como é um local que se preocupa em preservar os espaços públicos bem cuidados, e com menos poluição, Willian garante que é possível colher essas plantas sem risco. "Evite as que estão muito próximas de estradas, indústrias e ruas movimentadas ou aquelas que ficam muito rente ao chão, onde os cachorros alcançam", diz ele. Assim, vale colher flores de ipê, begônia, cravina, hemerocális (as flores amarelas são comestíveis, assim como os bulbos), calanchoe (também chamada flor-da-fortuna, com as pequenas flores e as folhas suculentas e azedinhas), serralha, trevos. Outra surpresa interessante foi saber que o broto de chuchu, também chamado de cambuquira e muitas vezes desprezado, pode ser comido até cru, com sabor suave e agradável.
No restaurante do chef, esses ingredientes singelos se transformam em iguarias frescas, nutritivas e ricas em sabor. A flor do ipê amarelo se transforma em um crocante tempura (veja receita mais abaixo), servido de entrada no Menu Confiança, o menu degustação que o chef cria com o que colhe e encontra de mais fresco no dia. As flores e folhas menores compõem a salada, outras mais firmes são refogadas. É uma forma rica de aproveitar ingredientes incomuns, que podem nascer espontaneamente no jardim de casa –e também uma forma de diversificar o aporte de nutrientes, pois essas plantas, muitas vezes, costumam ser até mais ricas em vitaminas, minerais e fibras do que a alface comum, por exemplo. "A gente não colhe todo dia das ruas, temos alguns produtores que fornecem algumas das plantas que usamos, trabalho muito próximo deles para sempre ter novidades", diz o chef. Willian tem hoje quatro fornecedores fieis, todos orgânicos, e também foca nos pequenos produtores regionais, que lhe trazem queijo, mel, pescados e outros insumos.
Cogumelos selvagens
De maio a julho é época de caçar cogumelos selvagens, que crescem nas áreas de montanhas, especialmente os da variedade porcini, mais comuns na Europa. "Até um tempo atrás, era impensável trabalhar com cogumelos comestíveis que crescem espontaneamente aqui. Hoje, encontramos orelha-de-pau e lactarius, mas o porcini é a estrela", afirma o chef. Naturalmente ricos em umami e muito proteicos, os cogumelos entram na composição de diversos pratos. Os pequenos e frescos podem ser consumidos até crus, em lâminas temperadas. Os maiores viram o emblemático cappuccino de porcini, que abre o menu degustação da casa, cremoso, perfumado e aveludado. Os mais velhos são desidratados e viram pó, que irá aromatizar pratos. E, por fim, os que já passaram do ponto e estão apodrecendo voltam para o campo, para inocular novas áreas e garantir a próxima colheita. Este ano, foram 85 kg de cogumelos colhidos, que foram parar também na sobremesa, em forma de sorvete.
Da praia, espinafre, beldroega e algas
A maior surpresa foram as PANCs que crescem à beira-mar. Com um olhar apurado, é possível encontrar espinafre-da-areia, beldroega, algas crescendo nas rochas e flores como a orquídea-de-praia, também chamada de bola-de-fogo, que tem um gosto agradável que lembra o pepino fresco. A salsa-de-praia é planta comum por ali, com sua folha arredondada que cresce na vegetação rasteira de solo arenoso. Por ter um sabor que lembra o do coentro, mas mais suave, o chef indica o preparo num ceviche. Uma das mais surpreendentes é a erva-baleeira, que possui um aroma intenso que lembra o do caldo de frango. "A gente tenta respeitar muito a sazonalidade e só pegar o que vai, de fato, usar, para não ter desperdício. Quando colhemos cogumelos, por exemplo, não vamos à praia, aproveitamos o que está na época", afirma Willian.
Quem quer se aventurar a descobrir novos sabores, pode começar pelo livro "Plantas Alimentícias Não Convencionais (PANC) no Brasil", de Valdely Kinupp e Harri Lorenzi (Instituto Plantarum, R$ 100). Todo ilustrado com fotos e receitas, dá para ter uma ideia de por onde começar, sem riscos. Afinal, não é só porque nasce espontaneamente que uma planta pode ser ingerida. E, sempre, observe o entorno: nada de colher plantas em praias poluídas ou onde passa muita gente, muito menos perto do esgoto. Com pequenos cuidados, dá para aproveitar ao máximo esses ingredientes diferentes.
E, já que estamos na época de ipê amarelo, o chef divide com o Menu do Dia sua receita de tempura para fazer em casa e servir como aperitivo. Lembre-se de higienizá-las bem antes de comer, como faria com qualquer verdura ou flor comestível do mercado. Além dela, aprenda a preparar o camarão com azedinhas, tartar de banana e vinagrete de kombucha, para aproveitar os trevos que nascem sozinhos no seu jardim:
Tempura de flor de ipê, creme de boursin, do chef Willian Vieira (Terroir Gastronomia)
Ingredientes:
Tempurá de ipê
90 g de farinha de trigo
90 g de amido de milho
1 colher (chá) de fermento em pó
200 ml de água gelada
Sal a gosto
Flores de ipê a gosto
Óleo para fritar quanto baste
Flor de sal a gosto
Creme de boursin
100 de creme de leite
45 g de queijo boursin
Modo de preparo:
Faça a mistura dos ingredientes secos: farinha, amido, sal e fermento. Vá adicionando a água aos poucos e misturando até formar uma pasta. Passe as flores nessa mistura e frite-as em óleo quente a 170ºC. Escorra em papel-absorvente e reserve. Para o creme de queijo, leve ao fogo baixo o creme e o queijo até incorporar. Sirva as flores fritas com o creme de boursin e finalize com flor de sal.
Camarão, tartar de banana, vinagrete de kombucha e trevo (azedinhas), do chef Willian Vieira (Terroir Gastronomia)
Ingredientes:
1 camarão grande
1 banana
1 cebola pequena
50 ml de kombucha (chá fermentado, pode ser feito em casa ou comprado pronto)
25 ml de mel de jataí
10 ml de azeite de oliva
Sal a gosto
Cebolinha verde a gosto
Azedinhas (trevos) a gosto
Modo de preparo:
Limpe o camarão e reserve. Corte a banana em cubos pequenos e tempere com sal, um pouco do azeite, cebola e cebolinha. Reserve. Prepare o vinagrete emulsionando o kombucha com o mel e o restante do azeite. Corrija o sal. Grelhe o camarão em uma frigideira bem quente. Disponha o tartar de banana sobre o camarão, regue com o vinagrete emulsionado e finalize com as azedinhas. Sirva em seguida.
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